Diário da Viagem (Parte II)

Voltamos ao restaurante. Na espera de que ele abrisse encontramos novamente o senhor Luiz, o vendedor de mangas, que se aproximou o iniciamos conversa. Contamos a ele nosso interesse de conhecer a vida de uma família cubana campesina. E assim vive Luiz e a sua família, que nos convidou para passar o fim de semana na sua casa. Mario, dispôs sua casa para deixarmos as bicicletas ate a nossa volta. Era uma sexta feira, voltaríamos no domingo pela manha. As 7 p.m saímos de ônibus rumo a Cocodrilo, um povoado onde vivem 40 pessoas, a 32 km de Giron. Durante o caminho foi uma festa. Era um micro ônibus lotado, e logo de cara todos já souberam que éramos estrangeiros. Muitos queriam aprender português, e pediam pelo samba. Nem o motorista escapou das brincadeiras. Esse povo carrega uma alegria, uma felicidade, e são todos muito simples, a vida dessas comunidades e muito simples. Havia dois garotinhos de 10 anos discutindo quem sabia mais inglês. Não sei se sou de me impressionar muito fácil, mas e que no meus pais garotos tão novos e pobres entenderem algo de inglês para mim não parece comum. Mas por um momento eles já estavam mais interessados no português que Tiaraju tentava ensinar. Jonas também estava na tentativa de ensinar algumas palavras a uma cubana bastante extrovertida, mas tudo acabava na gargalhada.... chegamos ao escurecer em Cocodrilo. Já eram as 9 p.m . E uma pequena vila. Todas as família sobrevivem da agricultura e cria de animais. Não há asfalto, e essa foi única reclamação que escutei de Luiz. Todas as casas tem o teto de palha. Somente a escola e uma sala de vídeo são cobertas por zinco. A energia elétrica e gerada por um motor, este e ligado das 8 a.m as 1 da tarde e das 4 da tarde as 11 da noite, e nos fins de semana fica ate as 12 da noite. A sala de vídeo esta aberta das 8 da noite as 8 da manha. Tem um televisor e varias cadeiras. O horário mais visitado e na hora da novela brasileira. O responsável pela sala e genro de Luiz, que sabia algo de português pois esteve dois anos na guerra de Angola. Sua esposa, Milagros, também funcionaria do Estado e responsável pelas mercadorias que chegam para abastecer a comunidade, o local de distribuição e venda funciona em sua própria casa. Eles tem um filho de 7 anos, Jose Manuel, ao principio muito tímido, mas que ao segundo dia se mostrou o mais travesso, fez muito amizade com o Valdemar. Jose e um dos guris que estuda na escolinha, onde há uma professora que tem em toda comunidade 4 alunos, e pela noite ensina ao mais velhos que queiram seguir estudando. A política do Estado cubano, a educação e um direito e necessidade fundamental do poço e um dos princípios dos princípios dessa Revolução. O consultório medico que usam esta na comunidade mais próxima e sempre tem um carro disponível para fazer o transporte. Há um telefone em uma das casas de acesso a todos. A sala de vídeo também oferece jogos de xadrez, jogo no qual a maioria dos cubanos são aficcionados, e também funciona uma pequena biblioteca. Na noite que chegamos chamamos muita atenção de todos, principalmente da dona Esmerida, esposa de Luiz, que não estava avisada da nossa chegada. Ela e uma senhora de seus 60 anos, tem um rosto serio, nada simpático, mas nos conhecendo melhor foi mudando muito, acho que ela se assustou um pouco no começo. Esmerida estava com um problema de circulação em uma das perdas e não podia fazer muito esforço, por isso nesse dia estava ai Maria para ajuda-la, essa e uma outra senhora extremamente simpática. Nessa noite jantamos pão e suco. E nos banhamos numa bacia e caneca. Isso me fez lembrar muito as historias que minha mãe contava de quando criança. Agente conversou toda a noite ate acabar a energia. Dormimos na sala. Eles também tem um filho, de 38 anos, mas que tem problemas mentais, e que por isso infelizmente não pode ajudar a Luiz com os trabalhos no sitio. Nessa mesma noite tivemos que sair a ajudar Luiz a encontrar sua mula que tinha se perdido pela mata.
Despertamos cedinho, e saímos a comer manga. Na propriedade de Luiz tem muita bananeira e manga, daí tira os frutos que vende na cidade. Também cria alguns porcos, e cabritos, dos quais tira leite. Enquanto ajudávamos a Luiz com seu trabalho ele ia nos contando sobre sua participação na batalha do Escambray e na de Giron. Quando ele foi convocado ao Escambray, já estava casado e com a mulher grávida. Com muita tristeza nos conta que a mulher perdeu o filho enquanto ele estava na guerra. Logo em 61 foi levado a Giron. Nessa, seu irmão o acompanha. Disse que de todo seu batalhão poucos sobreviveram, a maioria por pouca experiência. Eram soldados muito jovens. Junto a ele, quando ficou responsável por uma antiaérea, estava um garoto de 17 anos. Muitos aprenderam a atirar em plena guerra. Me emociona a historia de um garoto morto pelos mercenários, que depois de baleado, antes de morrer escreve com seu próprio sangue o nome de Fidel na parede. Mesmo depois de tantos anos Luiz se emociona ao lembrar de seus companheiros caídos em batalha.
Essa nação foi atacada e ainda é atacada somente por ser livre. Por essa conquista os cubanos lutaram e ainda resistem com uma coragem que somente um povo com a certeza do porque luta a tem. Em Giron os mercenários, com todo treinamento especial da CIA, e um armamento muitas vezes superior, em 64 horas foram derrotados. Giron foi o gatilho para em 63 ser proclamado o caráter socialista da Revolucao Cubana. Luiz reponde as nossas perguntas sem nenhum problema, mas eu percebo que ele não gosta dessas lembranças.....
Continuamos ajudando a Dona Esmerida com alguns afazeres de casa, lavamos nossas roupas, comemos muita manga, tomamos água de coco. Ajudei a Luiz tratar os porcos. Pela tarde visitamos as casa de alguns visinhos. Conhecemos um outro casal de tremenda simpatia. Se chamam Ramiro e Claridad. Ramiro é famoso como o contador de historia da comunidade. Ele inventa muitos “causos”. Nos revela que sua melhor atividade do dia é a leitura. No momento estava lendo o diário do Che na Bolívia, Caridad também nos mostra o livro que esta lendo, esse contava sobre a vida de Fidel. O maior orgulho do casal é o filho que cursa o doutorado em economia. E com todo orgulho nos conta que ele foi criado ali, em Cocodrilo. Ali, nessa pequena comunidade iniciou seus estudos, e que nunca teve seus sonhos limitados. Só teve que enfrentar a saudade de casa, porque a partir do quinto ano os estudantes passam a viver na escola na cidade de Giron e visitam a família nos fins de semana. Manuel, o filho de Milagros, sempre nos acompanhava, um guri muito experto. É maravilhoso olhar para esse garotinho de 7 anos brincando, sorrindo, livre, com a obrigação de apenas estudar e aproveitar sua infância, e com seus pais tendo a certeza de que seu filho poderá chegar a ser o que sonhar ser....
Um fato que nos impressionou muito, foi em uma das manhãs em que ajudávamos a colher manga, de repente Manuel começou a gritar avisando que ia passar o avião, então vimos que uma “avioneta”, dessas bem antigas se aproximava num vôo bem baixo e lançava um pacote de jornais. Foi algo inacreditável. Esse avião todos os dias passa a deixar os jornais em cada comunidade, e tem um responsável por recolhe-los e distribuir para a população....
O desejo era passar em Cocodrilo mais uma semana. Mas prometemos voltar algum dia. Pegamos o ônibus as 4 da manhã. Já em Giron na casa de Mario, ele nos preparou café da manhã. Nos deu algumas recomendações de viagem..... partimos rumo a Cienfuegos.
Pedalamos bem pela manhã, tínhamos um ritmo rápido. Mas o sol já estava alto. O caminho também era muito bonito, baita pântano ao lado da estrada.... já se completam 6 dias de viagem. E nessa manhã completamos 40 km. Alcançamos uma cidadezinha.
Ai umas senhoras nos deram água e nos informaram sobre os cubanos do pan americano que tinham sido comprados. Nos contaram que tinham sido deportados, e que Fidel tinha escrito uma nota dizendo que eles assumiriam postos de trabalho normais e que nunca mais voltariam a competir. Essa deve ser a maior pena para um esportista profissional....
Almoçamos pão e ovo frito e seguimos. Quebramos novamente a regra e pedalamos baixo de sol forte. O sol do caribe nessas condições não é nada agradável. E hoje parece que vamos pagar o preço. Eram as duas da tarde e seguíamos pedalando. O asfalto parecia ferver. Somos obrigados a parar vários momentos para descansar. Os guris estavam sentindo calafrios. Estou com medo de uma insolação. Na chegada de Cienfuegos tem muita subida. Entrando na cidade me sinto muito mal, tenho náuseas. Paro várias vezes a bicicleta com ânsias de vômito....
A entrada na faculdade foi tranqüila, nos deram um quarto, água para tomar banho, e cama, era tudo que necessitávamos. Já vencemos mais de 350 km. ... passo com diarréia toda essa noite. Todos estão como que com febre e exaustos. ...nessa cidade pretendíamos ficar somente dois dias, mas nos contou uma tia da limpeza que a festa de carnaval começava em dois dias. Então decidimos ficar um pouquinho mais. Waldemar e eu saímos a explorar a cidade.
Cienfuegos é considerada patrimônio cultural. Uma parte da cidade é banhada pelo mar. É muito bonita. A estrutura para o carnaval já estava sendo montada. Eram 18 carros de venda de cerveja. Tinha como 3 palcos para show... na espera para o inicio da festa passamos descansando. Estou preocupado em conseguir me comunicar com minha família de alguma forma. Não quero preocupar minha mãe. Sei que o Eduardo adoraria estar nessa viagem. Se eu com alguma dificuldade tento registrar nesse diário nossas experiências, o motivo maior é esse, tentar compartir de alguma forma o que vivo aqui...
Descobrimos que nossa historia esta ganhando sua fama. Na primeira noite de Carnaval conhecemos um grupo de estudantes, da Colômbia e Argentina que já estavam sabendo sobre os ciclistas....esse é o primeiro carnaval do qual participo....ha pontos de cerveja e comida por toda parte.. muitos shows, muita música e dança por toda parte.....tem muita gente, esse povo adora uma festa... (continua)