Diário da viagem (Parte IV)

…também houve mudança de rota. Perdemos o caminho para Trinidad. Ficou muito distante. Decidimos então seguir a Via Clara, cidade onde esta o Museu do Che e seus restos mortais. Estava a 90 km... esperamos carona.... em 20 minutos passa um caminhão com destino a Ciego de Avila. Essa é uma província anterior a Camaguey. Decidimos embarcar nesse mesmo. Foram quatro horas de viagem.
Ao chegarmos na cidade buscamos direto a Faculdade de Medicina. Nos hospedamos no quarto de uns colombianos. Tomar banho e poder lavar as roupas foi algo extraordinário.... também o jantar no refeitório estava excelente. O único problema é o calor que faz aqui, o quarto tem pouca ventilação. Sofro para dormir.
Hospedadas no mesmo quarto estavam duas colombianas, formadas em ciências políticas em Bogotá, estão em cuba de passeio. Chegaram em cuba sem conhecer a ninguém, somente levavam uma lista com nomes e telefones que uma amiga que estudava medicina aqui lhes passou. Essas duas sem duvida são mais loucas que a gente. A noite saímos todos para conhecer um pouco da cidade.
É uma cidade pequena, bem tranqüila, vejo poucos turistas circulando. ... um lugar muito famoso que pertence a essa província é um lugar chamado Cayo Coco... então decidimos ficar mais uns dias para poder conhecer, ai dizem estar as praias mais lindas de cuba. Esse parece que vai ser nosso momento turista...saímos as 4 da manha a tentar uma carona, agora sem as bicicletas. As duas colombianas nos acompanhavam.... para chegar até as ilhas se cruza por uma estrada artificial que liga uma ilha a outra, ta muito lindo, são mais de 18 km de estrada. Pegamos carona em uns caminhões de carga que entravam. ... definitivamente é a praia mais linda que já vi...não que tenha visto muitas..... nós riamos pela situação... sentados em baixo de uma cabana de praia comendo pão e água em meio aos turistas com seus drinks...nos divertimos muito.....













Novamente nossa simpatia ou nossas caras de coitados surtiu efeito. Buscamos uma lanchonete de um hotel para tentar comprar um refrigerante, mas ultrapassava nossas condições econômicas, o segurança nos perguntou pq não compramos nada e lhe explicamos, então ele nos chamou até o bar e pediu para que nós enchêssemos a garrafa de refrigerante....

Pela tarde regressamos com o ônibus que busca os trabalhadores dos hotéis. .... no dia seguinte decidimos seguir viagem...ir de carona foi a decisão do grupo.....as bicicletas já não apresentavam boas condições, e o trecho parecia ser muito deserto.

Estamos felizes por ser nosso dia de chegada em Camaguey. Já estamos completando 20 dias de viagem, 20 dias de estrada. Passamos horas esperando um caminhão, o único que passou nos deixava numa cidade próxima, Flórida se chama, fica a 30 km de Camaguey. O que nos sobrou foi pedalar esse pedaço, é o ultimo, e o fim da viagem, já é quase uma hora pedalando, calculamos ter feito uns 10 km, acho que já são umas 4 horas da tarde, sinto meu pedal um pouco frouxo, mais alguns metros e cai o pedal.

Tiaraju que vem atrás para, eu grito a Waldemar e a Jonas para pararem mas somente Waldemar escuta, Jonas segue.... concertamos o pedal. Jonas se distanciou muito. O tempo fecha, e começa a chover. É a primeira vez que pegamos chuva na estrada. Sou o segundo na fila, Jonas esta a mais de 50 metros de mim.
Vamos animados pela chuva que alivia o calor. Parece ser o premio da chegada. Os guris gritam, cantam, a estrada é bastante estreita, sem acostamento. Passa um ônibus pela frente e atrás um carro que tenta ultrapassar o ônibus, mas não consegue e tem que entrar novamente na pista, o carro derrapa e a traseira do carro se choca contra o Jonas.

Só vejo ele sendo jogado ao lado da pista. Me toma conta o desespero, pedalo o mais rápido que posso. O ônibus parou, carregava policiais que socorrem a Jonas antes que eu chegue. Não vejo sangue, e ele consegue caminhar. Os policiais se preocupam mais quando sabem que ele é estrangeiro. O ônibus não chegava a Camaguey, então eles param um caminhão e dão a ordem para que nos levem até o hospital. Continua chovendo. Todos estávamos preocupados.

Viajamos calados. Só conseguia pensar em todo perigo que passamos na viagem e na porcaria de medico que ainda sou por me desesperar numa situação dessas. Nos deixaram na porta do hospital. Jonas reclama muito de dor nas costas, mas consegue caminhar, o motorista do carro que nos atropelou foi até o hospital para saber como estávamos, eu e Waldemar fomos até a faculdade que fica ao lado deixar as bicicletas e conseguir um quarto. Não encontramos nenhum brasileiro conhecido. Quem nos socorreu foi uma argentina namorada de um companheiro do movimento. Ficamos no seu quarto. Ai vivia com mais 3 gurias paraguayas.
Os resultados do exames do Jonas foram bons. Não havia fraturado nada. Nada de grave tinha passado. Ele conta que se surpreendeu com o tratamento. Foi atendido muito rápido, teve três especialistas examinando. Fez uma bateria de exames, e claro, não nos cobraram um centavo, parece que a sorte continua com agente, nossa chegada a Camaguey não poderia ter sido mais emocionante .

Passamos mais de uma semana dividindo o quarto com nossas novas amigas, foram extremamente simpáticas, durante a semana encontramos umas companheiras do movimento com quem saímos de passeio por Camaguey, essa é a terceira maior cidade de Cuba.

O que tem de mais característico são suas ruas, que se distribuem como um labirinto. Contam que era uma forma de se protegerem contra os piratas, as gurias também nos levaram para assistir a um plantão no hospital materno, assisti pela primeira vez a um parto. Foi uma tremenda experiência. Ai também tirei minha duvida, se suportaria ver sangue, e passei no teste. Não imaginava que parir fosse tão difícil, somente sendo mulher para ter tanta forca e coragem, fiquei emocionado em ver aquela criaturinha tão pequena fazendo seu primeiro contato com o mundo de fora, afortunados são eles por haverem nascido em Cuba .



Participamos do curso de férias organizado pelo MST. Me assusta a conjuntura que trazem do Brasil. Parece que esse tempo em Cuba é como férias da feia realidade ai de fora, estou no meu pequeno paraíso vermelho.

Como finalização do encontro viajamos a outra província, Holguin. Fomos conhecer o local onde nasceu Fidel Castro e onde viveu durante sua infância junto a família, comunidade se chama Biran. É uma fazenda muito linda, que hoje funciona como museu, mantém as construções originais. Seu pai era imigrante espanhol de origem pobre, em cuba conseguiu construir fortuna, pois passava pela fazenda a única rota que unia o oriente com o ocidente da ilha, e isso favoreceu muito os negócios. Acreditando que o filho, Fidel, formado em direito em La Habana, voltaria a viver e a cuidar dos negócios da família construiu uma casa para ele, que por Fidel nunca foi ocupada. Não imagina a família que o filho tinha interesses muito maiores.

Me impressionou uma foto da mãe dele quando visitava ao filho Raul, na Serra Maesta. Ela carrega um revolver na cintura, muito corajosa, em plena guerra a visitar os filhos. Quando é assinada a lei de Reforma Agrária em 1960. a primeira fazenda desapropriada é esta.


Já passamos mais de semana em Camaguey, começo a sentir falta da ELAM. Me animei muito com nossas visitas aos hospitais, vendo os médicos trabalhando. Ainda não me imagino nessa profissão. Não me imagino médico, mas já começo a curtir muito mais essa idéia, nunca gostei da medicina e dos médicos no Brasil, mas ser um médico cubano, é bem diferente.

Estar aqui mudou minha vida, meu destino, meu futuro, devo ao MST, a Cuba e a minha família tudo que vivi e estou vivendo aqui.


Dedico sem duvida esse diário ao meu irmão, que sempre tem sido uma referencia para mim, fiz essa viagem pelos dois, cumpro o compromisso de me formar médico de ciência e consciência, segundo o pedido do comandante Fidel Castro, serei mais um soldado do seu exercito de batas brancas, pela construção de um mundo melhor, pela revolução socialista, hasta La muerte.

A aventura continua, estamos voltando pra casa... de trem.